Narcisa andou fumando escondido outra vez. Alteridade – droga pesada, ilícita no planeta Desencanto – tinha aquele gosto doce das coisas perdidas, o movimento dadivoso do que se desprende das lágrimas na maciez dos travesseiros e emerge. Clandestinamente, trocava ‘tanto faz’ por ‘tanto bene’. No espelho das águas quietas de suas noites compridas, não era o seu mas outro rosto que via. Um rosto tão belo quanto tristonho e parecia envolvo em véus tensionados ao limite pelas mãos do cansaço. Roubava da noite o cheiro de estrelas e exalava a justa indignação dos que sangram poesia em campos cegos cobertos por batalhas hostis. A imagem enchia os olhos de Narcisa com cuidados mansos. Dio Santo! Era ‘veramente bello’!!!
Distraída naquela contemplação que não basta aos olhos e pede um pouco mais de corpo no afago, um pouco mais de braços no abraço, um pouco mais de sonho nos signos, um pouco mais de alma na calma, Narcisa viu-se entre. Em. No. Dentro. Misturada àquela imagem que se espalhava em círculos ao seu redor, pressentiu a animação instantânea do mundo inanimado que ameaçava esmagar-lhe a ternura. Da boca fugia-lhe uma prece orvalhada: - o que escorre entre os meus dedos, descansa em Tuas mãos. Então, esquece nossas rixas diárias, meu Pai, e cuida daquilo que fizeste grande. Mas cuida feito Mãe, pôxa! Aninha. Embala. Protege. Alimenta. Derrama conforto nestas águas turvas que eu Te prometo semear paciência e paz, aqui, nas terras áridas que me arranham as ilusões.
Ao longe, um moço luminoso, todo vestido de verde, com o porte altivo e majestoso das ondas no mar, fazia-se mensageiro e assobiava uma canção que o vento repartia em comunhão.
Narcisa apagou o cigarro na palma da mão, olhou as marcas da brasa na sua pele – souvenir de humanidade – e voltou à dureza do seu mundo coisificante, esperando a hora de semear.
O que não se pode represar, cedo ou tarde transborda.
- A porta que eu acabei de bater deve ter acertado o seu divino nariz, então. Trem bão!
- Você anda histérica.
- E o Senhor, senil.
- Você está correndo demais.
- Ui. Meda de morrer, é? Tsc... tsc... tsc...
- Não quero falar das Minhas intimidades no momento.
- Tem razão, vai que alguém escuta, né? Vai pegar mal se cair na boca da gentalha que o Super Papito esposou a Vida, mas se regala mesmo é com sua amante temperamental – Donna Morte.
- Você já tem idade pra entender que a morte é um orgasmão, e seria muito injusto Eu me privar da minha melhor invenção (a única que deu certo, aliás). Você não ia querer ver em mim um celibatário com cara de santo, ia?
- Não estou a fim de falar palavrão agora, logo, abstenho-me de responder. Vais tomar um vácuo. Ecco!
- Naquela linguagem jurídica que você “adora”, quem pode o mais, pode o menos. Se os filhos de Deus podem, Eu posso também posso, ora bolas.
- Ah, puta que pariu... e aquela palhaçada de “não cobiçarás a mulher do próximo”? Sua Cara não queima não?
- Tenho nada com isso, aquilo é fruto de plágio. E mal feito ainda por cima. O que eu disse mesmo, ninguém ouviu. E eu disse: "não copiarás a mulher do próximo." Cobiçar, beliscar, mordiscar, bolinar, fornicar e outros "...AR" de igual natureza sempre estiveram liberados.
- Odeio plágio.
- Coisa do Demo, minha filha... do Concorrente. Capitalismo, cê sabe...
- Divina O-M-I-S-S-Ã-O, o Senhor sabe...
- Nem vem... “cada um no seu quadrado”.
- Era só o que me faltava!!! Deus funkeiro. Mereço. Chega de conversê, vamos ouvir Tracy Chapman que é melhor.
- Eu quem fiz!
- É... quando o Senhor quer, o Senhor capricha. Mas custa a querer, né? Preguiça não era pecado? Heim? Heim?
- Outro plágio mal feito. Nunca falei nada disso de pecado! Eu falei sapecado. Sa-pe-ca-do: chamuscado, levemente assado, que ou aquele cujo pêlo é vermelho-tostado. O povo, além de copiar, distorce tudo. Ô povinho! Dei cérebro a eles nem sei pra quê! Nunca usam...
- Verdade. E isso não desperta as divinas iras não?
- Raiva é departamento do Concorrente, já te falei mil vezes.
- Ah, cala a boca... please. Aumenta o volume aí.
- Sou impalpável, não tenho dedo.
- Aff... Impalpável, Invisível, Incompreensível e Inútil. Deve ser por isso que eu ainda Te amo desse tanto. Inútil super.
- Sem crueldades, tá legal? Esse negócio de "eu te amo" é demais até pra mim, diga pro Papai Noel se você sentir muuuuita necessidade de mentir, pra Mim não, me poupe. Vou aumentar o volume com meus super-poderes. Morra de inveja!
- Super... o quê? Não teve graça. Nenhuma. E só por causa disso, vou falar sério agora: Engata a ré aí e volta bonitinha pra casa.
- Nem phudendo.
- Vai voltar sim, isto aqui não é democracia, tô mandando, pronto, acabou. E ainda vou ligar pra dupla dinâmica – Remorso e Culpa – e ordenar que te escolte.
- Dizem que todo tirano tem 'O Coiso' pequeno e bobalhão... está embutido em Freud, Seu filhinho.
- Filho bastardo, bas-tar-do. Por favor, sem descer o nível. Vai voltar boazinha, bonitinha, educadinha, caladinha, subservientezinha, sereninha, calminha, pacientezinha, e aprender de uma vez por todas a se resignar. É muito emo ficar revoltadinha por ser usada o tempo todo. Eu te fiz pra isso! Aceite.
* freada brusca *
- Desce.
- Como assim?
- Desce A-G-O-RA! Parou a palhaçada.
- Se eu sair deste carro, desta forma, nunca mais vai chover, tô avisando.
- Que se dane! Eu cuspo pra cima e danço no cuspe mesmo – um amigo me ensinou, he he. É até mais orgânico, o cuspe. DESCE!
- Que porcaria!!! Credo.
- Porco é obra Sua também, só pra lembrar.
- Mas eu vou ficar no meio da estrada a esta hora?
- Pede carona, Mr. Invisível. Ou bate as asinhas...
- Eu sou Deus, não sou passarinho.
- Vazaaaaaaaaaaaaaaaaa!
O carro. A curva. A árvore. A atração impossível. O choque. Sucata e sangue por todo lado. Um mundo avermelhado onde nada pulsa mais. Alívio, enfim.
- Sorry, impulso do Velho Testamento, cê sabe... não resisti. A vingança é Bíblica.
- Hãã? Morri? Eu morri?! Morri pra sempre? De verdade? Sem metáforas, morte morrida mesmo? Ha! Ha! Ha! Finalmente!!! Rá! Ganhei! Hum... delicious! Uhu!!! Demorou... grazie, grazie, grazie!!!
- Os paramédicos já estão chegando, bestona. Ninguém foge de nada. Vai começar tuuuuuuuuuuuuuuuuudo de novo. Adoro esta parte! (¬¬')
Toma-me ao menos Na tua vigília Nos entressonhos Que eu faça parte Das dores empoçadas De um estendido de outono
De estar ali e largar-se Da tua vida.
Toma-me Porque me agrada Meu ser cativo do teu sono Corporifica Boca e malícia Tatos. Me importa mais O que a ausência traz E a boca não explica
Toma-me anônima Se quiseres. Eu outra Ou fictícia. Até rapaz. É sempre a mim que tomas. Tanto faz.
(Hilst)
Inspiração: semente rubra.
Como se fosse uma cor necessária no interior de uma tal abundância de luz; um instinto de relações rítmicas, que cobre vastos espaços - a longitude, o desejo de um ritmo estendido ao longe. Tudo se oferece como se fosse a expressão mais próxima, a mais correta, a mais simples. Todas as coisas vêm acariciantes em busca do teu discurso e te adulam. Tudo que é ser quer se tornar palavra, tudo o que é vir-a-ser quer aprender a falar contigo